terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A Igreja dos Ônibus Padronizados


No jornal A Crítica, de Manaus, em uma edição recente, uma leitora, a estudante de psicologia Elaine Regina, de 20 anos, criticou o fato de ônibus circularem com dizeres como "Feliz Natal" fere princípios constitucionais do Estado laico, já que se trata de uma evocação de uma data religiosa.

A leitora acrescenta que a exibição da frase impede que os ônibus, ao fazerem isso, atrapalham a informação dos destinos das linhas de ônibus, obrigando os passageiros a esperarem acabar a exibição para saberem os locais que as linhas se dirigem através dos letreiros digitais.

Mas as autoridades não estão aí. Afinal, é a Igreja dos Ônibus Padronizados. Embora a exibição de frases como "Feliz Natal", "Feliz Páscoa" e "Muita Paz" não tenham a ver com pintura padronizada, assim como o "Bom Dia" e "Boa Tarde", ela segue a "lógica" de um sistema de ônibus antiquado, próprio da ditadura militar e que insiste em prevalecer quase como uma "religião".

A Igreja dos Ônibus Padronizados gerou até um "Estado Islâmico" no Rio de Janeiro, com busólogos cariocas fazendo trolagem e empastelando até petições na Internet, porque, para eles, pouco importa o que sofre o povo, os medievais busólogos - que parecem viver no tempo do carro de boi - só defendem o que Eduardo Paes e seus sucessivos secretários de Transporte decidem e impõem à população.

Amarrar diferentes empresas de ônibus na camisa-de-força politiqueira dos "consórcios" e impor uma pintura padronizada às mesmas virou uma doença nacional. Virou uma "religião" medieval de tecnocratas e políticos que não estão aí para as leis e o interesse público, atropelando-os com sua demagogia em torno de uma "mobilidade urbana" própria do período ditatorial.

Eles acham que, se a população pode decorar capítulos e versículos da Bíblia, podem muito bem decorar a sopa de números e letras que é adotada nos códigos numéricos dos ônibus nas cidades. Pouco importa, se na correria do dia a dia, não há como diferir D58506 e D53605 ou esperar a "overdose de informações" de um letreiro digital, tem que se aceitar tudo isso e pronto.

A Igreja dos Ônibus Padronizados, que é a obsessão sobretudo de cidades que implantaram a pintura padronizada nos ônibus durante a ditadura militar - Curitiba, São Paulo e Belo Horizonte - e, mesmo decadente, é forçada a se multiplicar pelo resto do país a partir do nefasto exemplo do Rio de Janeiro, é uma "tendência" que só interessa a políticos e tecnocratas e apenas alguns empresários de ônibus.

A atitude de colocar diferentes empresas de ônibus para exibir a mesma pintura, que viola diversas leis - a medida atropela artigos da Lei de Licitações, Código de Defesa do Consumidor e até da Constituição Federal - , é uma obsessão de prefeitos e governadores que não abrem mão de transformar frotas de ônibus em verdadeiros outdoors políticos.

As autoridades concedem linhas de ônibus, mas não dão direito às empresas de apresentar sua identidade visual. Em outras palavras, "dão" as linhas, mas "ficam" com a imagem. As frotas de ônibus em circulação acabam expressando o poder político dos secretários de Transportes, criando uma crise de representação política e administrativa nos sistemas de ônibus.

Dessa maneira, os secretários de Transportes concentram ainda mais seu poder. Confundem fiscalização com autoritarismo, numa confusão comparável a de um porteiro de prédio com um síndico. O sistema de ônibus se "partidariza" e, se os empresários de ônibus deixam de ter autonomia operacional, acabam se tornando manipuladores do jogo político eleitoral.

As pessoas não percebem que esse modelo lançado pelo "deus" Jaime Lerner - divinizado com seu status quo de tecnocrata, mesmo sendo um político reacionário originário da ditadura militar - está decadente e piora o que estava ruim nos sistemas de ônibus.

Todos os defeitos dos sistemas de ônibus, como frotas mal conservadas, ônibus lotados e outras irregularidades acabam se agravando sob o véu da pintura padronizada, que faz as pessoas terem dificuldade de diferir uma empresa boa de uma empresa ruim, se bem que, com a mão-de-ferro dos secretários de Transportes, até empresas boas acabam piorando seus serviços diante dessa crise de direitos e deveres, representatividade e responsabilidade.

Trata-se de um sistema de ônibus confuso. Uma intervenção estatal não-assumida, na qual a secretaria de Transportes dá a falsa impressão de que empresas particulares continuam existindo e operando normalmente. Um desfile de discursos demagogos e mentirosos das autoridades que num momento sugerem que o sistema foi estatizado e em outro não. Contradição solta na pista.

Mas a Igreja dos Ônibus Padronizados e suas liturgias medievais que prometem uma "mobilidade urbana" digna dos "coronéis" do tempo da República Velha se garante pelas promessas de "milagres" sobre rodas como ônibus com ar condicionado, de comprimento longo (BRTs) e chassis de marcas suecas (Volvo e Scania).

Há os sermões de tecnocratas prometendo "maior agilidade" no esquema. Há o fundamentalismo dos busólogos associados que, como num disco riscado, disparam contra quem discorda deles comentários repetitivos como "pare de falar besteira". Há a propaganda divinizadora que tenta afirmar que "tudo vai melhorar" e que "havendo problemas, tudo será resolvido".

Esse reacionário sistema de ônibus, impróprio para o Brasil de hoje, é o resíduo do ideal do Estado autoritário e centralizado, que está fora da rota dos novos princípios, em que até políticas de esquerda admitem que o poder estatal não pode ser exercido de maneira centralizada e autoritária, com todos os malabarismos discursivos que tentem desmentir tais práticas.

Não se amontoam empresas de ônibus numa mesma pintura, num mesmo grupo político-empresarial (os "consórcios"), como se amontoa gado bovino e coloca o carimbo da fazenda do "coronel" de plantão. Sabe-se que, como gado bovino, as frotas de ônibus a serviço de linhas municipais e metropolitanas recebem o carimbo da prefeitura ou do governo estadual de ocasião, geralmente um logotipo de fantasia que evoca "Cidade de Tal Lugar" ou "Governo de Estado Tal".

Há até maior burocracia, sobretudo quando empresas tentam transferir carros de frota intermunicipal para municipal, que demoram para fazer registros, gastam dinheiro com mudança de pintura e deixam a renovação de frota mais lenta. Em certos casos, veículos de um consórcio circulam em linhas de outro porque a mesma empresa operadora não tem tempo nem dinheiro para botar outra pintura.

Tudo são desvantagens, transtornos, prejuízos. Como acontece no Rio de Janeiro que, cinco anos depois da implantação desse modelo caquético de sistema de ônibus, a situação piorou consideravelmente, pois até empresas antes consideradas boas como Alpha, Real e Matias circulam com frota sucateada, mesmo com poucos meses de uso.

Mas as autoridades e tecnocratas, o "alto clero" de uma "mobilidade urbana" de padrão ditatorial, não quer saber e eles se apegam às frotas de ônibus a ponto de "rachar" uma empresa de ônibus em diferentes pinturas, porque ela opera em linhas de município A, município B, Zona Sul de tal município, Zona Norte do mesmo, tem serviço de ônibus BRT etc etc etc.

Na Grande Belo Horizonte, tem empresa de ônibus com até cinco ou seis pinturas diferentes, o que deixa seus administradores à beira de um ataque de nervos. Com o desequilíbrio de pinturas e empresas, com diferentes empresas tendo a mesma pintura e uma empresa tendo pinturas diferentes, os passageiros piram na hora de pegar um ônibus.

Além disso, os letreiros mostram muita informação. Para a pessoa saber do destino de uma linha, tem que esperar pela saudação de "bom dia", "boa tarde" ou "boa noite", pela saudação religiosa "muita paz", "deus lhe abençõe", dos bairros que passam a linha "via Largo Tal", "via Praia Qual", havendo também o dado da hora certa e até o demagógico crédito da empresa de ônibus "Viação Tal", porque a mesma está proibida de apresentar sua própria identidade visual, que poderia facilitar as coisas.

A pintura padronizada nos ônibus é defendida com a mão-de-ferro similar à que os fundamentalistas islâmicos defendem no uso de burcas das mulheres. E essa restrição visual é o cartão de visitas de um sistema retrógrado, que oferece, no seu conjunto, a dupla função de motoristas e cobradores, a eliminação de linhas diretas por zonas e a redução das frotas de ônibus em circulação.

Sim, isso mesmo. Se você, passageiro comum, reclama pela demora da chega de um ônibus após longa e impaciente espera, e isso é sua pior queixa sobre um sistema de transporte público, é bom saber que esse grave defeito é visto como "qualidade positiva" pelos tecnocratas de ônibus que costumam ser endeusados como divindades messiânicas.

Vivendo nos mosteiros modernos de seus escritórios, esses "sacerdotes" da "mobilidade urbana" medieval que seguem os mandamentos do "papa" Jaime Lerner ignoram que muitas pessoas usem automóveis e acham que podem eliminar até 50% dos ônibus nas ruas que o sistema será "milagrosamente" melhorado. Dito isso em público, nem chega a ser conversa para boi dormir, porque o povo sofre muito esperando tanto tempo por um ônibus que demora a chegar.

A demissão de rodoviários por causa da dupla função do motorista-cobrador também é um drama que é puxado por ônibus padronizados nesse "trem político" de secretários de Transportes com poderes ditatoriais. Sob a desculpa de "simplificar" o embarque dos ônibus, usam a "hóstia" do Bilhete Único (um cartão eletrônico cuja eficácia é bastante duvidosa) para justificar o fim da função do cobrador.

Com tal decisão, rodoviários vão para o olho da rua aos montes. Mas tudo na surdina. Os governantes tentam desmentir, dizem que eles serão deslocados para outras funções, mas, não havendo lugar para todo mundo, muita gente vai embora. E o assessor da respectiva Secretaria de Transportes apelando para a imprensa não dar um pio sobre as demissões.

Ir e vir da casa para o trabalho ou estudo, ou para outras casas, virou um pesadelo. Mas esse calvário faz parte dos ritos da Igreja dos Ônibus Padronizados, que prometem o "milagre" dos ônibus longos e refrigerados com chassis suecos.

A não ser que a opinião pública possa reagir contra esse obscurantismo sobre rodas, no qual somos proibidos de saber a empresa de ônibus por sua identidade visual, autoridades que se acham divinizadas continuarão impondo esse sistema de ônibus retrógrado.

Daí que esse modelo ditatorial de sistema de ônibus tenta continuar de pé, depois de sucatear os sistemas de Recife, Florianópolis, Niterói, Campos dos Goytacazes e outras cidades, causando muitos prejuízos e sacrifícios para os rodoviários e a população, atropelando as leis e tirando o interesse público de circulação.

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