sexta-feira, 8 de abril de 2016

Pela saudade dos filhos, se esquece dos conselhos de Allan Kardec


A emoção, muitas vezes, trava o discernimento das pessoas. A dor, a saudade de um ente querido que faleceu, faz com que a ânsia de receber alguma mensagem espiritual se torne desesperada e a primeira mensagem atribuída ao falecido é acolhida imediatamente.

Não se está aqui reprovando a dor e a saudade em si. Sabemos o quanto essa situação é difícil, a tristeza é irreparável e a vida se torna melancólica por causa dessa tragédia. O problema é que, diante dos "telefonemas do lado de lá", a ânsia e a emotividade são tantas que se esquece da cautela que se tem, similar a dos telefonemas da Terra.

Quantas famílias também não caem nos trotes telefônicos de estelionatários traiçoeiros, que se passam por parentes das vítimas, se utilizando da leitura fria para improvisar e forjar, naquele instante, alguns aspectos pessoais desses parentes para depois suplicar a conta bancária e sacar uma grande soma de dinheiro, a pretexto de atender a supostas dificuldades?

Tivemos, no "espiritismo" brasileiro, o famoso caso de Humberto de Campos, que teve o nome usurpado por Francisco Cândido Xavier para a realização de pastiches literários, teve uma situação típica do que são as relações familiares.

Enquanto os filhos e a viúva do escritor, mais realistas, decidiram processar Chico Xavier e a FEB por causa do uso do nome do falecido autor maranhense, a mãe deste, Ana de Campos Veras, Tomada de saudade, Ana chegou até a mandar foto para o "médium", com a seguinte declaração: "Ao prezado sr. Francisco Xavier, dedicado intérprete espiritual do meu saudoso Humberto, ofereço com muito afeto esta fotografia como prova de amizade e gratidão".

NEM SEMPRE MÃES PODEM COMPREENDER OS FILHOS

O que muitos esquecem é que, por mais sincera e profunda seja a afeição de pai e mãe para um filho, isso não quer dizer que os genitores necessariamente compreendam a natureza da personalidade do mesmo.

Em muitas relações familiares, em que a afeição não prescinde divergências, a personalidade do filho se mostra bastante complexa para ser compreendida até pela mãe, por mais que haja o convívio diário.

Não raro filhos vivem na sua privacidade e não costumam revelar muito do que são para os próprios pais. Isso é muito desagradável afirmar, mas é a realidade que vemos nas famílias, é algo que escapa de qualquer sentimentalismo.

As relações de Lucinha Araújo com Cazuza ou de Renato Russo com Giuliano Manfredini, em que pese a afeição sincera e profunda, não significam necessariamente cumplicidade e perfeito entrosamento em relação ao trabalho.

Pelo contrário, Cazuza era o filho rebelde de Lucinha e o pai do cantor, o executivo João Araújo. No caso de Renato Russo, Giuliano não acompanhou os referenciais musicais do pai, e quando foi produzir tributos da Legião Urbana, chamou até Ivete Sangalo, que nunca teve relação alguma com o famoso roqueiro.

Se, nos trotes telefônicos, muitos pais e mães podem confundir os falsetes de sequestradores e estelionatários com entes queridos, o que dizer das mensagens supostamente espirituais, que mais parecem propaganda religiosa do que recados de quem afirma estar bem "no outro lado"?

ALLAN KARDEC, O "INCRÉDULO"

"Peço aos incrédulos que antes de ler este post, pesquisem no Youtube quem é Fernando Ben. Conhecimento é fundamental". A frase escrita por Márcia Brito, sobre a suposta mensagem espiritual do filho Ryan, que teve com o ex-marido, o humorista Nizo Neto (também famoso dublador e filho de Chico Anysio e Rose Rondelli), tenta atribuir autenticidade à "psicografia" recebida no último dia 03 de abril, no "centro espírita" Cartas de Fátima, em Sepetiba, Zona Oeste do Rio de Janeiro.

Fernando Ben é o "médium" e Márcia, ao fazer o comentário, fazia o mesmo apelo conhecido dos "espíritas", alegando que o "médium" é também um "filantropo", e que o "trabalho" que ele havia feito foi uma "caridade".

Dito assim, Márcia depois divulgou o suposto recado espiritual de Ryan, cujos únicos aspectos "distintos" são a menção do número do CPF e do telefone da mãe. "Gelei", disse Márcia, talvez sem saber do recurso da "leitura fria" colhido nas consultas dos "auxílios fraternos".

Sabe-se que, para que uma pessoa possa obter uma mensagem supostamente espiritual num "centro espírita", ela precisa fazer uma consulta antes. Isso sempre acontece. E, muitas vezes, o interessado preenche um formulário, no qual coloca informações como endereço de residência, CPF, número da identidade e o telefone para contato, fixo ou celular.

O que Márcia Brito se esqueceu é que, entre os "incrédulos", poderia muito bem estar o próprio Allan Kardec, se vivesse em nossos tempos. Isso é certo. Porque Márcia cometeu procedimentos que seriam, com segurança e imediatismo, reprovados por Kardec. Em outras palavras, a atriz e mãe de Ryan se esqueceu dos conselhos do professor lionês.

CONSELHO UNIVERSAL DOS ENSINOS DOS ESPÍRITOS

Mais do que todos, Allan Kardec sempre foi um cético em relação às comunicações espirituais. Ele reconhecia sua existência, mas via com desconfiança as identidades declaradas nas mensagens espirituais, pela natural dificuldade de poder identificá-las com precisão e transparência.

Kardec estabeleceu critérios muito rigorosos de observação, avisando, porém, que não há uma possibilidade conhecida de assegurar veracidade absoluta na mensagem atribuída a um espírito. Os critérios, segundo ele, eram uma forma de se obter uma veracidade provável, que tivesse, pelo menos, sua razão de ser mediante uma análise lógica.

No texto do Conselho Universal dos Ensinos dos Espíritos (CUEE), presente em O Evangelho Segundo o Espiritismo, e em todo O Livro dos Médiuns, ele estabelece um verdadeiro programa de estudo sobre mediunidade, como um pequeno curso dotado dos mais urgentes ensinamentos. Recomenda-se as traduções de José Herculano Pires desses documentos, para uma compreensão mais adequada.

Neles, Kardec recomenda que, quando se quer obter a mensagem de um espírito, é obrigatório recorrer, antes de tudo, aos seguintes procedimentos:

1) Escolher, no mínimo, três diferentes médiuns, que não tenham relações nem qualquer tipo de vínculo entre si, que lhes sejam completamente estranhos e, de preferência, sem uma causa aparente em comum. Isso diminui o risco de que uma mensagem atribuída a um espírito falecido tenha sido divulgada sob algum acordo entre os médiuns.

2) Verificar não apenas as semelhanças das mensagens recebidas com os aspectos pessoais relacionados ao falecido, mas também verificar se não existem outros aspectos que pudessem entrar em contradição com a personalidade do finado. Se existem dez semelhanças verossímeis e, no entanto, uma única diferença contradizer sua natureza, a mensagem é falsa.

Entre alguns conselhos auxiliares, observa-se que o médium não pode estar dotado de algum carisma adulatório, o que praticamente anula os que são considerados "médiuns" no Brasil. Até Divaldo Franco e Chico Xavier seriam reprovados por Allan Kardec, que conheceu médiuns quase anônimos, discretos e que nunca haviam se transformado em ídolos religiosos.

Márcia Brito descumpriu esses conselhos do "incrédulo" Allan Kardec. Ela recorreu a um único "médium", do qual era fã, e tomada de emoção não observou aspectos da mensagem recebida, atribuindo como "verídico" o texto da mesma.

Citando o CPF e o número do telefone da mãe, e citando alguns parentes ou amigos, em linguagem afetuosa, a mensagem, no entanto, soa simplória e, muito provavelmente, colhida de "leitura fria". É bom deixar claro que a solicitação dessas mensagens ocorre em razão de consultas prévias, nos quais os assistidos sempre transmitem alguma informação pessoal para seus atendentes no "auxílio fraterno".

Pesquisas também são feitas para colher dados. Um CPF pode ser colhido na página da Receita Federal, um telefone pessoal numa lista telefônica ou em alguma outra página com dados pessoais. E detalhes da vida familiar ou social podem ser colhidos até em conversas informais no fim de cada doutrinária, ou de outras fontes jornalísticas, biográficas ou bibliográficas.

CPF e número do telefone não são dados confidenciais. E também não há um sigilo absoluto das vidas familiares num "centro espírita". Em muitos casos, o que a mãe deixa de transmitir sobre seu filho falecido é transmitido pelo professor ou pelo tio.

É natural que um professor fale algo que a mãe do falecido não saiba, ou que o tio descreva dados diferentes do que a mãe ou pai transmitem. A ex-namorada de um jovem falecido pode também dizer algo bem diferente, que os pais não conhecem e não é isso que vai garantir veracidade, só porque o pai ou a mãe de um falecido desconhecem tais detalhes.

Daí que é muito complexa a natureza das comunicações espirituais. No Brasil, a mediunidade praticamente se reduziu a um faz-de-conta. E as emoções das famílias que perdem seus entes queridos só pioram as coisas e é justamente nessas situações que se esquece dos conselhos urgentes e nem sempre agradáveis do professor Allan Kardec.

É preocupante que, apesar de tudo, os brasileiros se denominem "kardecistas" e os "espíritas" saiam por aí dizendo que são "absolutamente fiéis" a Allan Kardec e "cumprem respeito rigoroso" ao seu pensamento, quando na prática fazem o extremo oposto. Melhor seria que todos desprezassem a pessoa de Allan Kardec e seu legado. Seria ruim, mas seria, pelo menos, sincero e honesto.

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