terça-feira, 29 de agosto de 2017

Por deturpação, "espiritismo" brasileiro pode estar perdendo adeptos


Oficialmente, o "espiritismo" brasileiro tem como seguidores 2% da população brasileira. Mas esse índice pode ser bem menor porque os critérios adotados são bastante flexíveis e confusos, podendo incluir "espíritas" ocasionais - pessoas fora da religião que recorrem, por exemplo, a tratamentos espirituais - até mesmo umbandistas intimidados com o racismo na sociedade.

Se considerar o termo "kardecista", a coisa não se resolve, porque o termo, apesar de ser derivativo do nome Allan Kardec, nada tem a ver com ele, sendo na verdade a definição da "fase dúbia" do "movimento espírita", que em tese evoca Kardec, mas na prática segue J. B. Roustaing.

Diante disso, o número de seguidores genuínos do legado kardeciano - é bom lembrar que se deve excluir os deturpadores que o bajulam e fingem apreciar a teoria espírita original - chega a ser inferior até mesmo a 0,1%, porque a maioria que se diz "espírita" é adepta de ideias roustanguistas, mesmo alegando "fidelidade absoluta" ao legado de Kardec.

Mas mesmo os roustanguistas enrustidos ("enroustanguidos"?) também são em menor número, diante de tantas contradições e pelo fato do "espiritismo", até por se tornar um clone da Igreja Católica, nunca oferecer um diferencial expressivo como religião.

O "espiritismo" apenas atrai, em maioria, um público bastante idoso, sendo na prática um "catolicismo" para exaustos, porque dispensa a ginástica do senta-e-levanta das missas católicas e dispensa compromissos formais associados ao Catolicismo propriamente dito.

ÁGUA COM AÇÚCAR

A maioria das atividades "espíritas" não oferece condições para o verdadeiro entendimento da Doutrina Espírita. Isso é menos mal, porque, quando a teoria espírita original é exposta, ela vem de deturpadores que não seguem rigorosamente as lições que divulgam em palestras, livros e depoimentos.

A Ciência Espírita tem, da parte destes palestrantes - uma elite de escritores e "médiuns" que bancam os "intelectuais" do "espiritismo" brasileiro - , uma exposição teórica razoável, mas que não diz muita coisa. Isso é notório, se observarmos, por exemplo, que a obra de Franz Anton Mesmer, autor do qual Kardec usou como ponto de partida para sua teoria espírita, não tem obras publicadas no Brasil.

Para piorar, há toda uma teoria de "mediunidade" que tem até pontos corretos, mas que os próprios "médiuns" não seguem. Se valendo do vício típico do povo brasileiro, a falta de concentração (que no cotidiano impede as pessoas de ouvirem música com atenção e se dedicarem à leitura regular de livros), a quase totalidade dos trabalhos "mediúnicos" é fake, pela incapacidade de obter a real comunicação com os espíritos.

Aliás, os espíritos desencarnados são os que menos se sentem inclinados a entrar em contato com os "médiuns espíritas". Isto é fato, porque o conteúdo do que entendemos, aqui, como mensagens "espirituais", não condiz com aspectos pessoais dos supostos autores, o que, para nós, é um processo fraudulento, mas, no mundo espiritual, é uma desonestidade maior ainda: no além-túmulo, a ideia é que os "médiuns", em vez de representar os mortos, decidem "falar por eles".

Isso é ofensivo, para os espíritos do além, porque não há a sintonia verdadeira das pessoas da Terra com eles, e não há coisa mais humilhante para alguém que gostaria de dizer alguma coisa que a de ver outra pessoa se passando por ele, escrevendo mensagem usando o seu nome.

Para piorar, as mensagens "espirituais" seguem sempre o mesmo conteúdo água-com-açúcar, completamente igrejista, que domina a maior parte das palestras "espíritas". Isso é como uma brincadeira de mau gosto, porque nem todo mundo está disposto a virar garoto-propaganda religioso, a fazer mershandising cristão, pois a maioria das "cartas psicográficas" apela para "nos unirmos na fraternidade em Cristo".

"CATOLICISMO" JESUÍTA

O que impede o "espiritismo" de aumentar sua popularidade, apesar de ser a religião mais blindada do país - em padrões que se comparam, na política, ao PSDB - , apoiada pela maior corporação de mídia do país, as Organizações Globo, é que seu conteúdo nem de longe empolga, porque soa como uma espécie de "catolicismo à paisana".

Observando com muita atenção o conteúdo do "espiritismo" em suas atividades e obras, nota-se que ele se tornou, na verdade, uma doutrina afastada, de maneira negativamente surpreendente, dos postulados espíritas originais. A alegada "fidelidade absoluta" a Kardec e até a apelos forçadamente hipócritas como "vamos viver Kardec" mais parecem conversas para boi dormir, cortinas de fumaça para tentar dissimular esse afastamento.

A coisa ocorre de tal forma que a evocação de padres, freiras, sacerdotes e outros figurões católicos na quase totalidade das "casas espíritas" - o precedente foi aberto com Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier, que evocou o padre Manuel da Nóbrega, renomeado Emmanuel - demonstra que o "espiritismo" brasileiro caminhou para ser uma versão repaginada do Catolicismo jesuíta, que vigorou no período colonial.

Na prática, o "espiritismo" brasileiro rompeu com Kardec porque seu conteúdo remete ao Catolicismo jesuíta, difundido pelo próprio Manuel da Nóbrega em seu tempo. O Catolicismo difundido pelo catecismo da Companhia de Jesus vem de Portugal, que manteve durante muito tempo dogmas e práticas medievais, praticando inquisições até mesmo na época da Revolução Francesa, no final do século XVIII.

Ideias como a apologia ao sofrimento humano, que remetem à Teologia do Sofrimento, são acolhidas pelos "espíritas" com mais entusiasmo do que os católicos. Além disso, os "espíritas" acabam defendendo valores moralistas mais conservadores e se alinhando até em manifestações sócio-políticas reacionárias, como os protestos contra Dilma Rousseff.

De maneira subliminar, identificou-se também, nos textos "espíritas", o apoio às reformas excludentes do governo Michel Temer, como a reforma trabalhista e a reforma da previdência. Apelos para os sofredores aceitarem o sofrimento, abrirem mão de desejos e necessidades mais fundamentais e se conformarem com as adversidades da vida tornaram-se mais frequentes, em diversas publicações e eventos "espíritas".

RAZÕES DA DECADÊNCIA

Em princípio, o que faz o "espiritismo" perder adeptos é a falta de um grande diferencial religioso, até porque a doutrina brasileira prefere imitar o Catolicismo até em ritos e dogmas, como no caso da água benta (pelo redundante nome de "água fluidificada"), o confessionário ("auxílio fraterno") e dogmas como a "data-limite" de Chico Xavier, imitação do "juízo final" católico.

Além disso, a aproximação do "espiritismo" com o Catolicismo jesuíta - que nem a suposta "fidelidade a Kardec" consegue disfarçar, porque o termo "kardequizar" é uma corruptela do termo "catequizar" - e a velha pieguice moralista dos romances "espíritas" pode fazer o "espiritismo" bastante agradável a pessoas com mais de 70 anos, mas muito deprimente e entediante para quem é mais jovem.

Mesmo as figuras dos "médiuns", em que pese a falsa atribuição de "futurismo" e "modernidade" dada aos mesmos, não deixam de serem antiquadas. O visual de Chico Xavier chegava a ser cafona, com sua peruca e seus óculos escuros. Como personalidades, Chico e seu principal seguidor, Divaldo Franco, remetem a velhas e antiquadas figuras do começo do século XX, ou talvez até de antes.

Chico Xavier era um caipira ultraconservador, como era em seu meio. Isso não é juízo de valor, é um fato confirmado sociologicamente. Como um caipira ultraconservador, ele era um beato católico, que em crenças era bastante ortodoxo. Sua ortodoxia só era "quebrada" formalmente pela aparente paranormalidade, bem mais precária do que se pode imaginar. Chico ia muito pouco além da "façanha" de conversar com a falecida mãe e com um antigo padre jesuíta.

Divaldo Franco, que já investe, na Mansão do Caminho, um projeto pedagógico bem de acordo com a Escola Sem Partido (curiosamente, a sigla ESP corresponde às três primeiras letras de "espiritismo"), remete ao velho e obsoleto estilo do professor verborrágico, aristocrático, símbolo de um saber hierarquizado e dotado de um discurso rebuscado de ideias prolixas.

Só para ter noção de como o perfil de Divaldo Franco é bastante antiquado, é só ver o livro O Ateneu, de Raul Pompeia (1863-1895), famoso escritor carioca. O modelo hierarquizado do professor "catedrático", personificado pelo diretor da escola, o pedagogo Aristarco, já era considerado decadente no ano em que a obra foi publicada, 1888.

Se confrontarmos os perfis de Divaldo com o do francês Allan Kardec, a coisa ainda se complica para o lado do "médium" baiano, definido pelo estudioso da Doutrina Espírita, José Herculano Pires, como roustanguista. Apesar das poses de "rigoroso discípulo de Kardec", o "médium" baiano difunde ideias que se chocam com os postulados espíritas originais, por mais que fale na tão alegada "fidelidade absoluta" ao pedagogo de Lyon.

Dá pena ver que muitos consideram Divaldo Franco "ultramoderno" e "futurista" e que muitos atribuem a ele e Chico Xavier a posse não só da verdade, como do futuro da humanidade. Logo eles, que sempre foram deturpadores severos e graves da Doutrina Espírita, católicos ortodoxos, figuras conservadoras e antiquadas no conjunto da obra.

É por isso que se vê que o "espiritismo" brasileiro perde adeptos, com "casas espíritas" se esvaziando constantemente. Em Salvador, houve caso de debandada de mais de 40 pessoas de uma única "casa espírita". Houve até rumores de que o "Centro Espírita Paulo e Estêvão", em Amaralina, iria se desfazer de parte de suas instalações, reduzindo seu espaço para conter despesas. A coisa está feia para aqueles que deturparam o trabalhoso legado de Kardec...

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